A VIDA CORAJOSA E COMPASSIVA DE THICH NHAT HANH

Por Andrea Miller
Tradução Tâm Vãn Lang

Em sete barcos cheios de alimentos até a borda, Thich Nhat Hanh e um pequeno grupo de voluntários subiram o Rio Thu Bom remando em direção ao alto das montanhas, onde os soldados estavam em pleno tiroteio e o ar fedia a cadáveres. O grupo não tinha mosquiteiro ou água potável, e, apesar dos ventos gelados, dormiram e comeram suas refeições de arroz natural em seus barcos. Sob estas severas condições, Nhat Hanh, que já tinha contraído malária e disenteria, sofreu uma recaída das duas doenças.

Era 1964, no Sul do Vietnã. Depois de dias de chuva pesada na região, o estreito vale foi inundado tão rapidamente que ficou impossível escapar às enchentes, deixando mais de quatro mil pessoas mortas e milhares de moradias destruídas. O país todo se mobilizou para ajudar, mas as vítimas nas áreas de conflito eram as que mais estavam sofrendo, e, com exceção de Nhat Hanh e seu grupo, ninguém queria ir ao auxílio daquelas vítimas, arriscando-se a ser aprisionado no fogo cruzado da guerra.

Durante cinco dias o grupo visitou vilarejos devastados para distribuir alimentos, e quando se encontravam com soldados feridos, os ajudavam independentemente do lado em que eles estivessem. Diante deste sofrimento, do prolongado sofrimento de todo o seu país, Thich Nhat Hanh cortou o seu dedo deixando o sangue cair no rio. “Isto”, diz ele, “é uma oração por todos os que morreram na guerra e na enchente”.

Budismo Engajado é a prática de aplicar os insights adquiridos em meditação, e os ensinamentos do Darma para aliviar o sofrimento de natureza social, ambiental ou política. Thich Nhat Hanh é amplamente reconhecido como o proponente original desta forma de prática, mas, como o próprio monge já disse em entrevista ao Shambhala Sun, todo Budismo é engajado: “Quando bombas começam a cair sobre as pessoas, você não consegue permanecer no salão de meditação o tempo todo. Meditar significa ter consciência do que está acontecendo – não apenas no seu corpo e nos seus sentimentos, mas à sua volta.

“Quando eu era um noviço no Vietnã”, ele continua, “nós, jovens monges, testemunhamos o sofrimento causado pela guerra. Então estávamos muito determinados a praticar o budismo de um modo tal que pudesse ser levado para dentro da sociedade. Isto não era fácil porque a tradição não oferece diretamente o Budismo Engajado. Nós tínhamos que fazer isso por nós mesmos”.

O Budismo Engajado, nascido em meio às guerras no Vietnã, tem despertado interesse no Ocidente, e hoje Thich Nhat Hanh, ou Thây, como ele é amorosamente chamado por seus alunos, é um dos mais influentes Mestres budistas no mundo. Ele também é um escritor prolífico, e o seu trabalho tem uma enorme amplitude. Ele escreveu autobiografia e periódicos, poesia, livros infantis e ficção histórica. No entanto, ele é mais conhecido por seus ensinamentos. Em muitos dos seus livros mais populares, incluindo Peace is Every Step and True Love, ele destrincha princípios budistas fundamentais e como estes são aplicados às nossas vidas. Outros volumes são de natureza mais acadêmica, como The Diamond That Cuts Through Illusion, que é um comentário sobre o Sutra do Diamante, ou Transformation at the Base, que extraindo das principais fontes de pensamento Budista oferece uma apresentação moderna do abhidharma, os tradicionais ensinamentos budistas sobre psicologia.

Alan Senauke, o antigo diretor executivo do Buddhist Peace Fellowship [Sociedade Budista da Paz], conversou comigo sobre os ensinamentos de Nhat Hanh e disse: “O assunto é muito bem fundamentado sem ser obscuro. Ele torna acessíveis ensinamentos difíceis de serem apreendidos, fazendo com que se tornem vivos. Você pode realmente ver como usá-los”.

Jack Kornfield, autor de The Wise Heart, acrescenta, “Thich Nhat Hanh tem a habilidade de expressar uns dos mais profundos ensinamentos da interdependência e vacuidade que já ouvi. Com a eloqüência de um poeta, ele sustenta uma folha de papel e nos ensina que a chuva e a árvore e o madeireiro que derruba a árvore estão presentes no papel. Ele tem sido um dos mais significativos portadores da lamparina do Darma que tivemos no Ocidente”.

THICH NHAT HANH nasceu em 1926 em Nguyen Xuan Bao no Vietnã Central. As lembranças mais maravilhosas de sua infância, como ele contou em entrevista a Oprah Winfrey, foi ver uma foto de Buda numa revista, quando tinha cerca de sete a oito anos. Buda estava sentado na grama, sorrindo, e parecia estar mais cheio de paz do que qualquer pessoa que o garotinho conhecia. Nhat Hanh decidiu que queria ser como Buda, ser um monge. Os pais dele eram relutantes para permitir isso, pensando que seria uma vida difícil; no entanto, quando ele tinha dezesseis anos eles lhe deram a permissão de entrar em um templo Zen da linhagem Lam Te (Rinzai), localizado perto de Hué.

Lá ele começou estudando sob a tutela do seu principal professor, o Mestre Thanh Quy Chan That; e aprendeu que meditação era a porta que leva à compreensão.  Mas os monásticos não praticavam apenas meditação o dia todo. No templo, todos, desde os mais superiores aos membros mais novatos da comunidade, seguiam igualmente o princípio “nenhum trabalho, nenhuma comida”. Então Nhat Hanh trabalhava com a pá no esterco, polia arroz, e carregava baldes de água até que os seus ombros estivessem vermelhos e inchados.

Depois de muitos anos, Thich Nhat Hanh tomou oficialmente os votos de monge e foi enviado ao Instituto de Estudos Budistas de Bao Quoc. Mas ele estava insatisfeito com a educação transmitida lá, pois faltava ênfase em literatura, filosofia e línguas estrangeiras. As autoridades do instituto não eram receptivas às sugestões dele de reforma curricular; por conseguinte, ele e mais um grupo de alunos foram embora, passando a residir num templo em Saigon, onde estudaram filosofia ocidental e ciência, acreditando que estes assuntos os tornariam aptos a reviverem o budismo vietnamita. Na década de 1930, um movimento de reforma budista liderado por jovens tinha começado no Vietnã, e o afastamento de Nhat Hanh de Bao Quoc deixou claro que ele estava alinhado àquele movimento.

Para contribuir com a reforma, Nhat Hanh ensinou e escreveu sobre Budismo e, por volta dos seus vinte e cinco anos, ele tinha diversos livros em seu currículo e uma reputação por ter algo revigorante e relevante a dizer. De acordo com os seus escritos da época, ele acreditava que para salvar o Budismo de ficar cada vez mais antiquado, o budismo teria que evoluir com o resto do mundo. A primeira nobre verdade lida com o sofrimento – que é permanente – mas em cada época, o sabor do sofrimento muda. Nhat Hanh ensinava que para os praticantes aliviarem sofrimento, eles precisariam ter uma experiência direta do sofrimento da época deles. Pensamento este, que estava colorido pela grave situação do Vietnã.

Durante a Segunda Guerra Mundial, o Japão invadiu o país e expulsou os colonizadores franceses.  Quando os japoneses se renderam em 1945, havia um vácuo de poder no Vietnã. Isso propiciava a Frente Viet Minh – um movimento comunista pela independência benquisto pelo povo – a lançar uma revolução. Os aliados, entretanto, tinham acordado que a França poderia restabelecer seu governo, e em 1947 eclodiu uma guerra de grande proporção. Em 1954 os franceses se retiraram depois da derrota em Bien Dien Phu, e numa conferência internacional em Genebra, o Vietnã foi dividido em dois estados: o sul a favor do ocidente, e o norte comunista; estados estes que foram reunificados após as eleições supervisionadas internacionalmente. Mas os americanos temiam que as eleições trouxessem os comunistas ao poder em todo o país, e asseguraram que as eleições nunca acontecessem. Desde então, rapidamente ficou claro que somente o poder americano – diplomático econômico e eventualmente militar – asseguraria a sobrevivência do governo vietnamita do sul.

Como os americanos, os budistas do Vietnã temiam a tomada de posse comunista. Para incentivar os budistas a criarem uma frente unificada em apoio ao Vietnã do Sul independente e democrático, Thich Nhat Hanh se tornou o editor de um jornal que encorajava o nacionalismo e o humanismo. Durante este período ele também escreveu uma série de artigos sobre o Darma para um jornal diário, fez convocações de reuniões onde comparecia centena de pessoas que compartilhavam sua visão para o Vietnã, e iniciou uma revista para jovens monásticos lutando para modernizar o Budismo.

Estes esforços fizeram com que ele fosse notado por membros do budismo conservador estabelecido, que procuraram impedir o trabalho dele. Especialmente o jornal que ele editava e que era publicado por todas as Associações Budistas do Vietnã, foi interrompido. Isto levou Nhat Hanh a mudar de trilho e ajudar a fundar Phuong Boi, uma pequena comunidade experimental localizada numa floresta perto de Saigon. Eu seu livro, Fragrant Palm Leaves, ele descreve liricamente a vida ali. As manhãs na floresta eram tão “imaculadas quanto uma folha de papel em branco, branco puro, se não fosse pela cor rosada ao longo das bordas”. E as noites tinham uma “cortina de escuridão” que era “espessa e reservada”.

Enquanto morava em Phuong Boi, Nhat Hanh continuou escrevendo sobre o Budismo Engajado e viajou a vários templos para dar palestras. Em uma dessas viagens, ele se encontrou com Cao Ngoc Phuong, uma aluna de biologia a quem ele iria eventualmente dar o nome dármico de Irmã Chan Khong. Ela se tornou um dos “treze cedros”, um grupo de jovens militantes apaixonados que estudavam com ele e o apoiavam de todas as formas. Mas Nhat Hanh continuava encontrando resistências dos budistas da escola antiga, que se sentiam ameaçados pelo grande número de alunos atraídos por ele, e estes opositores acharam formas de cancelar os cursos de Budismo que ele ensinava.  O governo também discordava de suas atividades, como também das atividades de outros associados à Phuong Boi. Um membro da comunidade foi preso, o próprio Nhat Hanh teve que voar para Saigon, e os que ficaram em Phuong Boi foram eventualmente forçados a se mudar para um vilarejo construído pelas tropas do governo.

Abalado por esta mudança no curso dos acontecimentos, Nhat Hanh aceitou uma bolsa de estudos para estudar religião comparativa nos Estados Unidos, na Universidade de Princeton. Seus periódicos de 1962 dão descrições tão líricas de Princeton quanto às de Phuong Boi: “Está tão fresco e seco nesta época do ano. À menor brisa, as folhas caem das árvores e roçam de encontro aos seus ombros. Umas são douradas, outras vermelhas como batom”. Mas Nhat Hanh estava com saudade de casa, sentindo muito o término de sua comunidade experimental.  Ele escreve: “Princeton é bela, mas não tem a beleza de Phuong Boi. A névoa nunca circunda as montanhas, fazendo você sentir como se estivesse de pé à beira do mar... Princeton não é selvagem como Phuong Boi”.

Mas ele também escreveu: “Não podemos nunca perder Phuong Boi. Esta é uma realidade sagrada em nossos corações”. Encontrar o seu verdadeiro lar dentro de si é uma habilidade que Nhat Hanh continuaria a desenvolver por muitos anos e agora ele é bem conhecido pela meditação: “Cheguei, estou em casa”. Ele escreveu no livro dele através daquele nome: “Cheguei à Terra Pura, um verdadeiro lar onde posso tocar o paraíso da minha infância e todas as maravilhas da vida. Eu deixei de ficar preocupado com ser e não ser, chegar e partir, nascer ou morrer. No meu verdadeiro lar eu não tenho medo, não tenho ansiedade alguma. Tenho paz e libertação. Meu verdadeiro lar está no aqui e no agora”.

Em 1962 THICH NHAT HANH começou um período de introspecção, após uma profunda realização da vacuidade iluminada por uma fonte inverossímil: um antigo livro da biblioteca da Universidade de Columbia. Depois de concluir seus estudos em Princeton, ele foi indicado para ensinar budismo em Columbia e se mudou para Nova Iorque, onde dividiu um apartamento com uma estudante americana graduada que aprendia vietnamita com ele e o acompanhava comendo alimentos vegetarianos.

Uma noite de outono daquele ano, enquanto estava na biblioteca, ele retirou um livro de uma prateleira. Este livro tinha sido publicado em 1892 e doado à biblioteca da Columbia naquele mesmo ano, mas de acordo com o cartão enfiado na capa detrás, ele tinha sido emprestado apenas duas vezes – uma em 1915 e outra em 1932. Ao decidir ser o terceiro a pegá-lo emprestado, Nhat Hanh estava dominado pelo desejo de encontrar os outros dois. Eles já teriam desaparecido, ele constatou, e logo mais ele também desapareceria. Ele ficou imaginando o que estaria por baixo das suas emoções, se é que existia alguma coisa, e ele sentiu um vislumbre de insight. Depois ele explicou em seu diário: “Se você me espanca, apedreja, ou mesmo me atinge com um tiro, tudo o que é considerado como ‘eu’ se desintegrará. Então, o que realmente existe se revelará indistinta como fumaça, elusivo como vacuidade, e, no entanto, nem fumaça nem vacuidade; nem feio, nem não feio; bonito, porém não bonito... como o gafanhoto, eu não tinha pensamento algum do divino”. De acordo com Thich Nhat Hanh, ele se tornou monge no Vietnã e lá ensinou várias gerações de alunos budistas, mas foi no Ocidente que ele realizou o caminho.

Entrementes, em sua pátria a situação ficava cada vez mais terrível. Em abril de 1963, Ngo Dinh Diem, o Presidente Católico Romano do Vietnã do Sul, baniu a exibição da bandeira budista no tradicional aniversário do nascimento de Buda. Manifestações aconteciam e muitas pessoas foram mortas, outras presas e torturadas. Em junho, um monge budista tocou fogo no próprio corpo em público até morrer, como forma de protesto. Este foi o primeiro caso de auto-imolação no Vietnã, mas outros se sucederam.
Nos Estados Unidos, Nhat Hanh se preocupava – perturbado por sonhos de seus esforços mais nobres estarem causando mal e de cadáveres se rompendo em dois, como se fossem feitos de porcelana. De junho a outubro de 1963, ele deu entrevistas a jornais e estações de televisão com muita freqüência para reunir apoio para o movimento pela paz, e ele traduziu para o inglês as reportagens sobre violações dos direitos humanos que tinha recebido do Vietnã, preparando um documento que ele apresentou às Nações Unidas. Ele também fez cinco dias de jejum anunciado publicamente.

Depois disso, em novembro de 1963, o regime Diem caiu e o próprio Diem foi assassinado durante o golpe. Nhat Hanh recebeu uma corda de um monge que tinha sido um dos budistas conservadores que se opôs aos seus esforços de modernização do budismo vietnamita. Mas agora este monge urgia Nhat Hanh a voltar pra casa e ajudar a reorganizar a religião. Nhat Hanh estava pensativo e comovido. Como é maravilhosa a impermanência, disse ele para uma de suas alunas Cao Ngoc Phuong, que mais tarde ficou conhecida por Irmã Chân Không.

Em 16 de dezembro de 1963, Thich Nhat Hanh voou ao Vietnã e, poucas semanas depois, submeteu ao conselho executivo da Igreja Budista Unificada no Vietnã uma proposta com três pontos principais. Ele pedia para que eles clamassem pela cessação das hostilidades no Vietnã; estabelecessem um Instituto Budista que ensinasse aos líderes do país a agir com tolerância, e criassem um centro de treinamento para que assistentes sociais ajudassem no surgimento de uma mudança social pacífica. Mas o conselho apoiou somente a idéia do Instituto, que foi inaugurado em fevereiro de 1964 com o nome de O Instituto para Estudos Budistas de Nível Superior, que posteriormente se tornou a Universidade Van Hanh. Os dois outros pontos o conselho considerou sonhos irrealistas de um poeta.

Nhat Hanh, todavia, estava destemido e, mesmo sem a sanção da Igreja Budista Unificada, ele continuou e fundou o primeiro de vários vilarejos experimentais para servir de modelo para mudança social. Os aldeões eram encorajados a desenvolver sua própria economia local e a prover sua própria educação e assistência de saúde, e os jovens eram treinados a ajudá-los a se tornarem autoconfiantes, ensinando-os métodos modernos de agricultura e meios de melhorar o saneamento público. Quando a Igreja Budista Unificada viu o sucesso de Thich Nhat Hanh, eles concordaram em apoiar sua idéia de treinar jovens para servir aos pobres, apesar de não oferecer qualquer ajuda financeira.

Em setembro de 1965 Nhat Hanh anunciou que a School of Youth for Social Service (SYSS) [Escola dos Jovens pelo Serviço Social] seria fundada como um curso da Universidade de Van Hanh. A resposta foi impressionante; mais de mil jovens idealistas se inscreveram para os trezentos lugares do curso. Mas em 1966 a Igreja Unificada Budista revogou seu apoio por temer que Nhat Hanh estivesse coligado com os comunistas. Mas a SYSS foi capaz de se manter sobre os próprios pés naquele tempo e, entre outros trabalhos benéficos, os participantes do curso arriscaram suas vidas ajudando os camponeses a reconstruir vilarejos que foram bombardeados muitas e muitas vezes, durante toda Guerra do Vietnã.

Em fevereiro de 1966, Thich Nhat Hanh ordenou seis líderes da SYSS como membros de uma nova ordem religiosa que ele denominou de Ordem Interser. Esta ordem, que ainda floresce hoje, é uma comunidade de praticantes budistas – homens, mulheres, clero e laicos – que se comprometeram a servir, praticando o mínimo de sessenta dias de consciência plena por ano, e aderindo os catorze treinamentos da consciência plena. Estes treinamentos, compostos por Thich Nhat Hanh intencionam ser a visão moderna de centena de preceitos tradicionais que os monásticos vêm seguindo por milênios. Mas estes não querem resistir às tradições budistas, mas sim alcançar o coração do darma.

Os primeiros três treinamentos objetivam superar o fanatismo e divisionismo ideológico, e crença de que você é melhor que os outros. O quarto treinamento urge os praticantes a não apenas contemplar o sofrimento, mas agir para diminuí-lo. O quinto envolve consumo – viver com simplicidade e evitar agentes inebriantes; e o sexto diz respeito a encontrar um antídoto para nossa raiva individual, visto que ela tem conseqüências sociais de longo alcance. O sétimo treinamento – que está no âmago de todos eles – trata da importância da consciência plena do momento presente, e o oitavo e o nono treinamentos tratam da fala correta. Depois os últimos cinco treinamentos envolvem o corpo em seu sentido mais amplo, urgindo-nos, por exemplo, a não cometer atos violentos ou a se engajar em comportamentos sexuais prejudiciais.

A ordenação dos seis primeiros membros da Ordem Interser foi uma celebração. Cada ordenando recebeu uma lamparina com um abajur feito a mão onde Thich Nhat Hanh caligrafou em caracteres chineses “Lamparina da Lua Cheia” e “Lamparina da Sabedoria”, etc. Destes seis ordenados, três eram homens e três mulheres, incluindo Cao Ngoc Phuong. Estas mulheres escolheram serem celibatos como monásticos, embora elas não tivessem raspado a cabeça. Os três homens, por outro lado, escolheram casar e praticar como budistas laicos. Devido à natureza rompante da guerra, ninguém mais teve permissão de se unir à comunidade cerne da Ordem até 1981, mas hoje existem mais de mil membros cernes.

Em maio de 1966, THICH NHAT HANH deixou o Vietnã pensando que seria por algumas semanas, mas acabou se tornando quarenta anos de exílio. O propósito dele era dar um seminário sobre Budismo Vietnamita na Universidade de Cornell e continuar numa turnê de palestras, promovendo paz e expressando as visões dos vietnamitas que nem eram comunistas nem anticomunistas. Durante esta viagem, Nhat Hanh se encontrou com várias figuras notáveis, incluindo Thomas Merton, o Senador William Fullbright, e Robert McNamara, Secretário da Defesa, e também Martin Luther King Júnior, que depois o nomeou para o Prêmio Nobel da Paz.

Mas no 1° de junho, dia em que ele apresentou sua proposta de paz numa entrevista coletiva para imprensa em Washington, o governo do Vietnã do Sul o acusou de traidor. A proposta dele urgia os americanos a pararem de bombardear e a auxiliar na reconstrução, livre de laços ideológicos ou políticos. Ele também fez outras sugestões, que deixava claro que Nhat Hanh não tinha preferência por nenhum lado na guerra. Isso o tornou num inimigo de ambos os lados.

Ele se mudou para a França, para um bairro pobre em Paris, onde se tornou presidente da Delegação de Paz do Budismo Vietnamita. Ele e seu pequeno grupo de funcionários trabalhavam para informar o público sobre a situação no Vietnã e para encontrar patrocinadores para as crianças órfãs vietnamitas. Era importante trabalhar, mas era um tempo desafiador para ele pessoalmente. Ele diz que se sentia como uma célula precariamente separada do seu corpo ou como uma abelha separada da sua colméia. Ele aguardava o tempo em que pudesse retornar ao Vietnã. Mas quando o governo comunista do Norte passou a controlar o Vietnã do Sul em 1975, sua permissão para entrar no Vietnã foi negada.

Em 1976, Nhat Hanh participou da Conferência Mundial sobre Religião e Paz em Singapura e, enquanto estava lá, um grupo de mulheres vietnamitas lhe disse que milhares de refugiados vietnamitas estavam acampados em vários países do sudeste asiático, sem qualquer esperança de serem aceitos em algum outro país por causa das cotas de imigração. Estes refugiados eram apelidados de ‘o povo do barco’ porque muitos deles tinham escapado em barcos frágeis. “Eles se entulhavam nos barcos como sardinhas”, diz Irmã Dang Nghiem, uma monja da Ordem Interser, originalmente do Vietnã.
O povo do barco deixou o país deles porque temiam a vida sob o julgo dos comunistas, mas escapar era perigoso. Se o governo os pegasse fugindo, o que acontecia freqüentemente, eles eram ou aprisionados ou mortos. Os piratas eram outro perigo, e freqüentemente os refugiados depois de terem sido roubados e estuprados por um bando de piratas, eram logo em seguida atacados por outros. O povo do barco, diz Irmã Dang, “tinha mais chance de morrer do que de chegar à outra margem”.

As mulheres vietnamitas que Nhat Hanh se encontrou em Singapura lhe disseram que muitos governos, inclusive o de Singapura, tinham uma política de mandar os barcos de refugiados de volta ao mar – de volta ao perigo. As mulheres vietnamitas sabiam que nove pessoas estavam prestes a serem expulsas e elas convidaram Nhat Hanh para ser uma testemunha. Ele ficou comovido com o que viu e começou a trabalhar pelo povo do barco. Ele e seus aliados arrecadaram dinheiro para alugar duas embarcações – um navio de carga, o Roland e um navio tanque a óleo, o Leapdal – e dentro de poucas semanas no alto mar eles resgataram mais de oitocentos refugiados. O plano era levar os refugiados para Guam e Austrália e, caso eles não recebessem visa no local, Thich Nhat Hanh e seus amigos convidariam jornalistas para cobrir a situação. Entretanto, quando palavras da missão de resgate vazaram, os refugiados na Tailândia e Malásia começaram a deixar os acampamentos na esperança de encontrar o Roland e o Leapdal.  Isso enraiveceu o Alto Comissário dos Refugiados das Nações Unidas e, menos de três meses após o projeto ter começado, Nhat Hanh foi forçado a interromper seu trabalho em prol do povo do barco.

No entanto, ele continuou ajudando espiritualmente e emocionalmente, diz Irmã Dang. Please Call Me by My true Names [Por favor, me chame pelos meus verdadeiros nomes], o mais celebrado de todos os poemas de Thich Nhat Hanh, foi escrito em 1978, enquanto ele ajudava o povo do barco. Nestes versos, ele escreve que ele é a refugiada de doze anos que se atira no mar depois de ter sido estuprada pelo pirata, e também é o pirata, ainda incapaz de amar. Ele é o membro de politburo com poder nas mãos, e também o prisioneiro no campo de trabalho forçado. Ele conclui:

Por favor, me chame pelos meus verdadeiros nomes,
assim eu posso despertar
e a porta do meu coração
poderia ser deixada aberta,
a porta da compaixão.


“Isso é muita compaixão”, diz Irmã Dang, “e isso é curador para muita gente antiga do barco, que lê o poema de Nhat Hanh. Ele os ajudará a abraçar sua própria dor e a fazer uma conexão com outro ser humano”.

THICH NHAT HANH também estava desenvolvendo um crescente número de seguidores enquanto professor de Darma. Em julho de 1971, ele e sua pequena comunidade, em sua maioria de alunos vietnamitas, tinham começado a procurar uma propriedade barata na zona rural, e finalmente se assentaram numa minúscula casa caindo aos pedaços no sudeste de Paris. Nhat Hanh e seu círculo íntimo continuavam a viver e a trabalhar na capital, mas nos fins de semana eles iam pra aquela casa, que passou a ser conhecida como Batatas Doces. Em cada quarto eles trabalhavam tornando-o habitável e eventualmente agradável. Em 1975, Batatas Doces servia como residência para onze pessoas o ano todo e, com seu lindo ambiente natural, lhes ajudavam a curar dos horrores da guerra.

Em 1982, o lar Batatas Doces estava pequeno demais para acomodar todo mundo que queria ir pra lá para retiros, então a comunidade comprou dois lotes de terra na região de Dordogne, onde algumas das mais deliciosas ameixas do mundo são cultivadas para secar. Um lote de terra veio a ser conhecido como Upper Hamlet [Aldeia mais alta] e a outra como Lower Hamlet [Aldeia mais baixa] e em conjunto ficaram sendo conhecidas como Plum Village.

A comunidade trabalhou muito para transformar Plum village no que ela é hoje. Uma das primeiras coisas que fizeram foi plantar um pomar de ameixas em Lower Hamlet, para que eles pudessem eventualmente vender a fruta e arrecadar dinheiro para as crianças pobres dos países em desenvolvimento. Em 1990, as árvores já estavam começando a dar frutos e em 1992 a colheita foi de seis toneladas.

As árvores e a comunidade cresciam lado a lado. Em 1983, eles festejaram a primeira abertura de verão com 117 praticantes e até o ano 2000 aquele número tinha aumentado para 1.800. Plum Village hoje tem cinco aldeias separadas, mas permanece um centro rústico. Eu seu livro: Cheguei, estou em casa: celebrando vinte anos de vida de Plum Village, Nhat Hanh explica “eu nunca quis construir aqui um mosteiro bonito e luxuoso. Quando consigo vender meus livros, o dinheiro tem sido usado para levar alivio ao faminto e às vitimas de enchentes no Vietnã. Ainda há muitas pessoas em nossa sanga que dorme em sacos de dormir. Irmã Chân Không ainda dorme em um saco de dormir. Em Plum Village eu costumava dormir num colchão bem fininho sobre uma prancha de madeira em cima de quatro tijolos. Isso não me impedia de ser feliz”.

No ano 2000, a sanga de Thich Nhat Hanh fundou o seu primeiro mosteiro nos Estados Unidos: Deer Park. O complexo em Escondido, Califórnia teve uma história: ele tinha sido um centro de desintoxicação, um resort de nudismo, uma casa de detenção, e centro de treinamento de perícia em tiro ao alvo para oficiais da polícia. No tempo em que a sanga comprou a propriedade, os prédios – muitos deles barracões – estavam dilapidados e cheios de balas e lixo, mas eram rodeados por um vale estreito e arborizado de cor lilás e artemísia. Em seu livro Learning True Love, Irmã Chan Khong diz “eu sabia que conseguiríamos pegar esses barracões horríveis e torná-los belos como tínhamos feito em Plum Village”. E com certeza ela estava certa.

Thich Nhat Hanh conta agora com dezena de milhares de alunos ao redor do mundo, e só nos Estados Unidos tem centenas de grupos praticando em sua tradição. Em 2007 ele fundou um terceiro centro de prática, o Mosteiro Blue Cliff, localizado no Vale Hudson de Nova Iorque, e a cada dois anos ele realiza retiros com a sanga da costa leste e oeste, que atraem mais de mil participantes cada. Thich Nhat Hanh escreveu mais de quarenta e cinco livros em inglês, desde bestsellers até trabalhos acadêmicos. Ele tem ensinado a consciência plena aos policiais, prisioneiros e políticos. Ele liderou passeatas pela paz, reuniu os Israelitas e os Palestinos para meditarem juntos, e inspirou todo um movimento de Budismo Engajado.

Em 11 de janeiro de 2005, Thich Nhat Hanh teve finalmente a chance de pisar novamente no solo vietnamita. Acompanhado por membros de sua sanga, ele viajou por todo o país se conectando com o povo do Vietnã. Ele deu atenção especial aos jovens.
A Irmã Pine, uma monja que visitou o Vietnã com Nhat Hanh, diz que “Mais de cinqüenta por cento da população nasceu depois que ele tinha partido, portanto ele estava se conectando com uma ou duas novas gerações do povo vietnamita. Isto é importante porque no Vietnã os jovens vêem Budismo como uma coisa dos avôs deles, e só querem ir para as grandes cidades e viver um estilo de vida urbano ocidental. Thay é um dos poucos professores que tiveram sucesso em atrair as pessoas jovens, mesmo para a vida monástica”. Mas, ela continua, o governo comunista se assustou com o fato de tanta gente, particularmente jovem, com formação universitária, estar atraída pelos ensinamentos dele.

Em 2007, Thich Nhat Hanh fez uma segunda visita à pátria dele, e dessa vez um dos focos principais foi ajudar a sarar as feridas da dolorosa história do Vietnã. Ele teve muitas formas de realizar isto, explica Irmã Pine: “Thay fez propostas ao governo vietnamita para permitir aos vietnamitas nascidos no exterior de retornarem sem ter que conseguir vistos como se fossem estrangeiros, e erguer memoriais para as pessoas que morreram nos barcos. Mas realmente, o ponto central foram três cerimônias de réquiem – uma no norte, uma na região central e uma no sul”. A idéia era a de que as cerimônias fossem dedicadas a todas as pessoas que morreram na guerra independentemente do lado em que elas estavam.

Rituais bem festivos para os mortos são tradicionais no Vietnã. Mas os rituais liderados por Thich Nhat Hanh foram os primeiros a serem permitidos para todas as vítimas da guerra. De acordo com ele, era crucial esta prática coletiva de cura. “Se nós não transformamos o sofrimento e mágoas agora, eles serão transmitidos para a próxima geração”, disse ele. “As pessoas sofrerão e não compreenderão por que. É melhor fazer algo imediatamente para transformar o sofrimento”.

Thich Nhat Hanh fez mais uma visita ao Vietnã, em 2008. Mas desde então já tinha ficado claro que ele não era mais bem vindo. Quando Nhat Hanh retornou pela primeira vez, o abade de um templo chamado de Bat Nha ofereceu repetidamente o cargo de abade pra ele. Nhat Hanh pediu ao abade para permanecer na posição dele, mas concordou em ajudar a converter o templo num mosteiro, e procurou a permissão governamental para fazer isso. O governo deu permissão e a sanga de Nhat Hanh ampliou a propriedade.

Originalmente havia um salão de meditação com a imagem de Buda que cabia apenas cinqüenta pessoas. Mas, segundo conta Irmã Dang, que passou muitos meses em Bat Nha, “De 2005 a 2008 nós construímos cinco prédios, incluindo um salão de meditação que podia acomodar três mil pessoas. Depois compramos terra na área vizinha e triplicamos o tamanho do mosteiro. O governo não podia prever o quão rapidamente Bat Nha se desenvolveria, e eles não poderiam imaginar a resposta do povo. Milhares e milhares de pessoas vinham ao nosso centro para praticar nos dias de consciência plena, que acontecia aos domingos”. E em menos de quatro anos Thich Nhat Hanh ordenou, naquele mosteiro, mais de quinhentos jovens monges e monjas.

Em meados de 2008, o seu sucesso em atrair praticantes tinha se tornado demasiadamente ameaçador aos olhos do governo comunista, e eles começaram a dissolver a comunidade. Primeiro eles exigiram que os monges e monjas de Plum Village deixassem Bat Nha. Depois eles exigiram que os praticantes vietnamitas também partissem.

Em junho de 2009, uma facção do governo alugou um grupo de arruaceiros para jogar fezes nos monges e no prédio, suspenderam faixas que diziam “Plum Village, vá pra casa. Onde quer que você vá leva sofrimento”. Em setembro, a situação chegou ao auge. Aproximadamente cem policiais vieram e evacuaram os monásticos. Dois monges seniores foram presos e o resto da comunidade foi forçado a sair e ficar na chuva por dez horas sem comida e sujeito a assédio sexual e abuso físico. Mas nenhum dos monges e monjas reagiu com violência. Entoando cânticos, eles se mantiveram calmos.

Muitos dos monásticos buscaram refúgio em um templo próximo, mas os oficiais os capturaram, e o abade foi pressionado a fazê-los partir. Segundo Irmã Dang, “Independentemente de irem pra casa ou se esconder em pequenos grupos, ou irem para um templo, eles estiveram sendo perseguidos. Eles continuam a ser perseguidos pelo governo”. Atualmente as comunidades de Nhat Hanh na França e Estados Unidos estão tentando conseguir vistos para os monásticos vietnamitas, para que eles possam vir para os centros de prática no ocidente, mas este é um processo lento e o sucesso é incerto.

Depois da expulsão, Thich Nhat Hanh fez muita meditação caminhando, Irmã Dang diz: “Às vezes quando eu ia à cabana dele estava ventando muito do lado de fora e as árvores balançando, e Thay dizia, ‘O céu e a Terra estão sentindo a dor dos nossos irmãos e irmãs lá longe’.

“Nós somos idealistas e otimistas”, continua Irmã Dang. “Nós podemos ou não ter um centro exatamente como Bat Nha novamente, mas ele terá formas diferentes”. Ela rir, “Nós construiremos quatrocentos Bat Nhas”.

NO VERÃO DE 2009, durante um retiro ao ar livre em Boston, Thich Nhat Hanh teve uma súbita infecção pulmonar crônica. Inicialmente, pensava-se que ele seria capaz de prosseguir ao próximo retiro agendado no Colorado, mas os médicos recomendaram que ele fosse hospitalizado e recebesse uma série completa de antibióticos. Com este cuidado médico ele se recuperou e retornou quase que imediatamente ao seu programa de ensinamentos rotineiros. Agora “ele está a todo vapor” diz Irmã Pine. Aos oitenta e três, “Ele deixa todos nós humilhados – pessoas com metade ou um quarto da idade dele”.

Hoje em dia, ele tem escrito muito, particularmente em resposta à situação em Bat Nha. “Nós vemos que somos a continuação de nossos ancestrais, e que somos um córrego fluindo, não um açude ou lago estagnado em um lugar”, escreve ele numa carta recente endereçada aos “meus filhos em Bat Nha e outros próximos e distantes”. “Nós também podemos ver em nós a presença dos nossos irmãos e irmãs mais jovens... Nós estamos nos transmitindo aos irmãos e irmãs mais jovens, e aos jovens a quem ensinamos e cuidamos, sejam eles monásticos ou laicos. Nós os vemos em nós e nós neles. Estamos tendo a oportunidade de transmitir o que há de mais belo e saudável em nós mesmos para eles, e isso é uma grande alegria e satisfação... Nós, nossos ancestrais, e nossos filhos estão unidos em um único córrego fluente. Não há separação, nenhum arrependimento”.

Shambhala Sun, julho 2010.