AMOR E LIBERTAÇÃO [Parte I]


Melvin Mc Leod entrevista Thich Nhat Hanh

[Shambhala Sun, Julho 2010]  
Tradução por Tâm Vãn Lang

Porque a consciência plena é a chave da felicidade?

A consciência plena faz surgir a concentração. A concentração faz surgir o insight (discernimento). O insight liberta a pessoa da ignorância, da raiva, da ganância. Quando você está livre das aflições, a felicidade se torna possível. Como poderia alguém ser feliz sobrecarregado de raiva, ignorância e ganância? Por isso, o insight que consegue lhe libertar destas aflições é a chave da felicidade.

Existem muitas condições de felicidade que estão presentes, mas as pessoas as desconhecem por não estarem conscientes. Quando o corpo e a mente estão unidos, você está inteiramente presente, você está totalmente vivo e consegue tocar as maravilhas da vida disponíveis no aqui e agora. Então você não pratica apenas com a mente, mas também com o seu corpo. O corpo e a mente devem ser experimentados como uma coisa, não duas. A partir dessa experiência, você vê que tudo o que está buscando já está aqui - seja a iluminação, o nirvana, a libertação, Buda, Darma, Sanga ou felicidade, tudo está nesse exato lugar. De fato, este é o único lugar, o único momento onde você pode encontrar essas coisas.

Por outro lado, quando o corpo e a mente estão separados, quando estamos perdidos em pensamento e não estamos presentes, nós levamos um tipo de existência que o Senhor descreve como sendo semelhante ao de um cadáver.

Talvez intelectualmente as pessoas saibam que elas devem viver no momento presente, mas a energia habitual que tem estado com elas por muito tempo está sempre empurrando elas para se apressarem. Deste modo elas perderam a capacidade de estar no momento presente para conduzirem suas vidas profundamente. Por isso é importante praticar, e conversar não basta. Você tem que praticar o bastante para realmente parar de correr de um lado a outro, e assim poder se estabelecer no momento presente. Este é o início da prática: parar. Parar, olhar profundamente e encontrar felicidade e libertação - este é o caminho budista.

O Senhor enfatiza o extrair alegria e prazer da prática - a alegria de andar sobre esta Terra, o prazer de inspirar conscientemente. Talvez seja a nossa formação puritana, mas eu penso que é fácil para nós vermos a prática budista como algo que deveria ser austera e sem alegria. Pode quase parecer errado associar religião com prazer e celebração.

Eu penso que quando as pessoas ouvem os ensinamentos das quatro nobres verdades, e ouvem as palavras mal-estar e sofrimento, elas pensam que o Budismo é só sobre sofrimento. Mas elas não sabem que a terceira nobre verdade é sobre a felicidade, o oposto do sofrimento. Existe o sofrimento, e existe um caminho que leva ao sofrimento. Mas também existe a cessação do sofrimento que significa felicidade, e existe um caminho conducente à felicidade. Talvez fosse bom colocar as duas segundas nobres verdades em primeiro lugar. Assim, a primeira nobre verdade seria a felicidade e a segunda verdade seria o caminho conducente à felicidade. E a terceira nobre verdade seria o sofrimento e a quarta as causas do sofrimento.

Quando estamos plenamente conscientes achamos a alegria, mas também descobrimos a dor e mágoas dentro de nós, que é uma experiência difícil. O que o Senhor ensina às pessoas para que elas se relacionem com  este sofrimento quando ele surge?

O sofrimento e a felicidade interexistem. Nós só podemos reconhecer a felicidade em oposição ao sofrimento em segundo plano. É como quando você identifica o branco em oposição ao fundo preto. Somente se você estiver com fome pode experimentar a alegria de ter algo para comer. Se você experimenta o sofrimento da guerra, pode reconhecer o valor da paz. Caso contrário, você não aprecia a paz e quer guerrear. Portanto, sua experiência do sofrimento da guerra serve de pano de fundo para sua felicidade de paz. Por isso, ter algum sofrimento é muito importante. Você aprende com o sofrimento, e em oposição àquela experiência, você pode reconhecer a felicidade. 

Existe uma tendência profunda em nós de buscar prazer e evitar sofrimento. Esta tendência está enraizada em nossa consciência armazenadora, que é chamada de manas em sânscrito. Manas está sempre buscando prazer e tentando evitar a dor e o sofrimento. Manas não está consciente do perigo da busca do prazer porque existe ignorância em manas. É como um peixe que está prestes a morder a isca e não sabe que dentro da isca tem um anzol. Manas não está consciente do perigo do prazer e desconhece a boa qualidade do sofrimento. É bom experimentar algum sofrimento, porque quando você sofre, você desenvolve compaixão e compreensão. Como manas ignora os perigos do prazer e as boas qualidades do sofrimento, nós temos que transferir o insight que desenvolvemos em nossa prática de meditação para a consciência armazenadora, e o primeiro insight a ser enfatizado é que a busca do prazer é perigosa e evitar o sofrimento não é inteligente, pois o sofrimento tem sua própria qualidade benéfica.

Quando você tem consciência plena, quando você tem coragem suficiente de voltar para si mesmo e abraçar o sofrimento dentro de si, você aprende muito. Ao fazer isso, você transforma seu sofrimento. Se estiver sempre tentando fugir do seu sofrimento, você não terá chance alguma de fazer isso. Foi por este motivo que Buda nos disse para primeiro reconhecer a verdade do sofrimento, a primeira nobre verdade, e contemplar profundamente para descobrir a segunda nobre verdade, a causa do sofrimento. Este é o único meio pelo qual a quarta nobre verdade, o caminho para transformar sofrimento em felicidade, pode se revelar. Por isso temos que enfatizar o papel do sofrimento. Se estivermos demasiadamente temerosos do sofrimento não teremos chance alguma.

Eu  acho que todos nós sentimos amor verdadeiro com relação a alguém em nossas vidas, alguém cujo sofrimento nós tomamos para nós com prazer, e  a quem alegremente ofertamos nossa felicidade. Expandir este tipo de amor para mais pessoas, para todas as pessoas em última instância, seria a melhor coisa que poderíamos fazer. Isso transformaria nosso mundo. Como é que nós pegamos este amor que cada um de nós tem dentro de si e o expandimos para um círculo mais amplo?

No momento em que você nasceu, você começou a experimentar medo, o medo original, pois havia risco de você morrer naquele decisivo momento. Você tinha acabado de sair de um lugar muito confortável, o útero da sua mãe, e eles tinham cortado o seu cordão umbilical. Agora você tem que respirar sozinho, e tem líquido nos seus pulmões. Você tem que evacuar aquele líquido para inalar pela primeira vez, e se você não conseguir fazer isso, morrerá. Então a primeira experiência do medo acontece neste momento. Enquanto bebê, você sabe que é impotente. Você sabe que só consegue sobreviver se tiver alguém cuidando de você, Quando você ouve os passos de sua mãe chegando você os reconhece como a pessoa que cuidará de você, e  você fica feliz. Você passa todo o tempo esperando aquele som, porque quando aquela pessoa chega terá leite, terá calor, terá tudo.

Este é o tempo em que nascem o primeiro medo e o primeiro desejo, e quando você cresce o seu desejo de ter um companheiro é apenas uma continuação disso. Você sente que necessita de alguém para cuidar de você, porque você é impotente, você é vulnerável, não conseguirá vencer sozinho. Você precisa do outro. Se você estiver ansioso procurando um companheiro, isso significa que o seu primeiro desejo original ainda está presente, e você não se sente seguro quando ninguém está presente. Desse modo o seu companheiro, o seu amado pode ser uma continuação de mamãe e papai. Você tem paz porque sente "eu estou bem agora, mamãe está aqui, papai está aqui". Não é a verdadeira presença da outra pessoa que lhe traz este relaxamento. É sua idéia de que "mamãe está aqui" ou "papai está aqui". Mais tarde, você pode descobrir que a pessoa sentada ao seu lado é um transtorno e você quer se divorciar dela. Isso se dá porque realmente não é a presença dela que lhe proporciona aquele sentimento de relaxamento, mas suas próprias idéias e desejos.

O amor no budismo sempre começa com você mesmo, antes da manifestação da outra pessoa na sua vida. O ensinamento sobre o amor, no budismo, é aquele quando você vai para o lar dentro de si, e você reconhece o sofrimento dentro de si. Assim a compreensão do seu próprio sofrimento lhe ajudará a se sentir e amar melhor, porque você sente a completude, a satisfação dentro de si. Então você não precisa de outra pessoa para começar a amar. Você pode começar consigo mesmo. O amor verdadeiro não escolhe apenas uma pessoa. Quando o verdadeiro amor existe, você brilha como uma lamparina. Você não brilha sobre uma pessoa na sala. Aquela luz que você emite é para todos na sala. Se você realmente tem amor dentro de si, todos a sua volta vão se beneficiar - não apenas os humanos, mas também animais, plantas e minerais. Amor, verdadeiro amor, é isso. Amor verdadeiro é equanimidade.

Entâo é menos uma questão de expandir o amor que agora sentimos do que mudar o fundamento do nosso amor de necessidade para auto-completude?

Certo.

A Irmã Chân Không nos conduziu numa meditação para desenvolvermos consciência das várias causas e condições que fizeram quem somos hoje, como nossos pais, cultura, mentores espirituais, e que ainda vivem dentro de nós. Por que isso nos ajuda?

O eu é composto de elementos que não são o eu, e é a compreensão profunda da inexistência do eu autônomo que pode nos libertar. Nós somos feitos de elementos que não sâo nós. Quando contemplamos profundamente, reconhecemos em nós ancestrais, pais, culturas, sociedades, tudo.

Muitos professores budistas falam do princípio da interdependência de uma forma abstrata, mas eu acho muito útil olhar as influências específicas, tanto negativas quanto positivas, que fizeram quem sou hoje.

Eu acho que o ensinamento pode ser apresentado de forma simples e até mesmo crianças podem compreendê-lo. Hoje de manhã fomos guiados numa meditação sobre elementos da família vivos dentro de nós: "Vejo em mim o meu pai como uma criança  vulnerável de cinco anos. Eu sorrio para ele com compaixão". Este tipo de visualização pode nos ajudar a tocar a verdade da inexistência do eu autônomo. Quando você compreende que está formado por elementos que não são você, você compreende que o seu pai está dentro de você. Este é um tipo de prática que pode fazer brotar o insight da interexistência, de nenhum eu. E pode lhe libertar da raiva, se você estiver com raiva do seu pai, e assim por diante.

Por que meditamos nestes elementos que não são self dentro de nós não só com insight mas também com amor?

Insight e amor são a mesma coisa. O insight traz amor e o amor é impossível sem insight, compreensão. Se você não compreender, você não consegue amar.

Este insight é compreensão direta, não apenas algumas noções e idéias. Em meditação permitimos ser iluminados pela luz deste insight. Às vezes ajuda ter uma imagem para que você possa realmente compreender. Por exemplo, eu explico para as crianças que, para um pé de milho é difícil ver que num momento anterior ele era um grão de milho. Mas esta é a verdade, e se você realmente vir dessa maneira, terá o insight da interexistência entre a planta e o grão de milho. Porque sem grão de milho como poderia o pé de milho existir? A mesma coisa é verdade na relação pai e  filho, mãe e filha. Se esta verdade for tocada através da meditação, o ódio e raiva desaparecerão, e o amor se torna possível.

[Esta entrevista continua...]